Aroma de Flores
- Cristiane Bonezzi

- 15 de jun. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 14 de set. de 2020

− Parem de se mexer! Gritou a diretora numa tentativa inglória de acalmar os alunos alvoroçados. Ninguém entendia o que estava acontecendo. Chegamos na escola e demos com a porta principal trancada. A turma da bagunça já se adiantava combinando qual seria o programa para aproveitar o recesso involuntário. As patricinhas procuravam os celulares na mochila para deixar os pais de sobreaviso caso a aula fosse mesmo cancelada. Eu confesso que observava tudo um pouco impaciente, assim como, aparentemente, o Delfim. O zelador chegou com a chave mestra e finalmente abriu a porta. Por uma incongruência só explicada pela explosão de hormônios da juventude, todos se amontoaram porta adentro, apesar de ninguém estar ansioso para ter aula. Em instantes, porém, um grito de espanto conseguiu o feito que a diretora não havia conseguido: todos ficamos paralisados. A recepcionista fitava atônita um objeto postado embaixo de sua bancada de recepção. − É uma bomba! E foi aquele tumulto de volta para o lado de fora.
− Parece mais um pom-pom do que uma bomba! Soltou o palhaço da turma, aparentemente porque a bomba era muito colorida, quase espalhafatosa.
A polícia foi chamada e verificou que a bomba não estava armada. Foi alarme falso. Aliás, parecia que era um projeto bem amador. Ainda assim, foi instaurado um inquérito para descobrir quem era o responsável.
− Isso tem toda a cara daqueles baderneiros! Acusou Juca, o professor de matemática.
− Deve ser isso mesmo, professor. Concordou Jessica, toda insinuante.
− Calma, não vamos tirar conclusões precipitadas. Todos serão ouvidos e vamos colher todas as evidências para encontrar o verdadeiro responsável. Reprimiu o delegado.
O local do crime foi isolado com fita e cones de trânsito, mas por segurança guardaram a bomba em uma saleta com chave aos fundos da recepção. A mesa da recepcionista resistiu impassível, com sua uma agenda, porta-canetas e um vaso com flores fresquinhas. As aulas foram retomadas normalmente no dia seguinte, mas os alunos precisavam contornar a área para chegarem às salas de aula. A polícia montou um posto avançado na biblioteca para interrogar cada aluno e funcionário da instituição. Não houve praticamente nenhum tumulto na rotina, já que a biblioteca era o local menos frequentado da escola. O único contratempo é que volta e meia algum aluno era chamado no meio de uma aula para depor, o que desconcentrava todos os estudantes e reacendia as conversas paralelas sobre quem teria sido o criminoso e se a pessoa retirada da sala seria apenas mais uma testemunha ou o próprio acusado.
Quando me chamaram, achei que iam me fazer mil perguntas sobre meus hábitos ou o que eu havia visto na véspera. Só que não. O interesse deles era no meu melhor amigo. Quer dizer, não é que o Delfim fosse meu melhor amigo, daqueles para quem você conta tudo, mas era a pessoa com quem eu tinha mais contato na escola, além do Floriano. Nós três éramos inseparáveis. Todos os trabalhos coletivos fazíamos juntos, eram os únicos com quem dava para trocar cinco frases inteligentes sem ter que explicar alguma palavra. Queriam saber há quanto tempo o conhecia. O que fazíamos juntos. Se eu estava sempre com ele na escola, coisas sobre o comportamento dele. Tudo muito estranho.
Na saída o Floriano estava me esperando e como era de praxe, parecia ler meus pensamentos. Ele era o tipo de cara que raciocinava tão depressa que adivinhava o que ia acontecer antes do fato consumado. Eu não gosto do termo, mas tenho que admitir que ele era o mais nerd de nós três. Lia muito e, quando sua mãe o chamava, respondia que estava ocupado refletindo sobre um problema gravíssimo. Tinha até conseguido passe livre na sala de informática para desenvolver uns projetos de programação. Antes mesmo do professor explicar o enunciado ele já tinha concluído mesmo os exercícios mais complexos. Mas ele não era só inteligente ou bom memorizador de fórmulas e macetes. Ele realmente era perspicaz e tinha uma capacidade de análise crítica acima da média. Acima até da capacidade dos professores. Eu diria até, neste caso, que acima da capacidade do delegado.
O fato é que ele me abordou na saída da biblioteca confirmando sua suspeita. – O investigador acha que foi o Delfim, não é?
− Como você sabe?
− A dedução é natural. Essa onda de massacres em escolas gerou um efeito imediatista de busca por justiça. Existe uma tendência simplista em atribuir esses impulsos violentos a um perfil de jovem antissocial, que sofreu bulling ou simplesmente que não se enquadra nos padrões e que se revolta contra o sistema. Nesse sentido, o Delfim é um alvo fácil. Somos seus únicos amigos, e ainda assim, não sabemos muito sobre ele. Só convivemos com ele no espaço da escola.
− Caramba, não é possível. Imagina, cara! O Delfim não seria capaz disso! Ele é inofensivo! Acho que não mataria nem uma barata se estivesse sozinho com uma no banheiro!
− É evidente, Carlos. Você e eu sabemos disso, mas para a polícia, é muito mais fácil encontrar alguém que se enquadre em um perfil pré-desenhado para satisfazer a necessidade de sensação de segurança de uma sociedade caduca, resolver logo o caso e cair fora. Cabe a nós esclarecer os fatos.
− Você tem razão. É, quer dizer, o quê? Cabe a nós o quê?
− Você e eu vamos desvendar esse crime frustrado. Eu tenho uma suspeita, mas temos muito o que investigar para inocentar nosso colega. Me encontre depois do almoço na portaria.
E foi assim que eu me vi envolvido em uma investigação paralela. Logo eu, que sempre fiquei na minha e detesto me meter na vida alheia. Mas não tive escapatória, o Floriano, além de perspicaz, é muito persuasivo. E além do mais, eu estava curioso para acompanhar os métodos dele e seguir sua linha de raciocínio para desvendar esse crime.
− O segredo de uma investigação séria é você tentar refutar a hipótese mais óbvia. Se você conseguir provar que está errado, quer dizer que está no caminho certo.
Fiquei tentando assimilar essa aparente contradição enquanto seguíamos em direção à recepção da escola. A Elaine, estagiária na administração, tinha uma queda pelo Floriano. Não foi difícil conseguir que ela nos desse passe livre para ver a bomba, guardada no depósito. Ele a examinou detalhadamente por vários minutos, de todos os ângulos.
− Hmmm, interessante, melhor do que eu imaginava. Já vi tudo que precisava aqui.
Dali fomos à casa do Delfim.
− E aí? Entrem. Querem um copo de leite? Tava jogando video-game, querem jogar?
− Só uma rodada rápida. Estamos de passagem. Que história doida essa da bomba, hein?
− Pois é, mas o delegado disse que não se deram nem ao trabalho de armar a bomba. Aposto que foi alguém que não estudou pra prova querendo só ganhar tempo. Duvido que tenha sido alguma intenção mais grave.
− É, pode ser mesmo. Esse leite está uma delícia, mas acho que almocei demais. Posso dar o restinho pro seu gato, Delfim?
− Gato? Não tem nenhum gato aqui. Não posso ter nenhum bicho, eu sou muito alérgico, só de cruzar com um animal na rua já começo a espirrar. Além do que, minha mãe não gosta de pêlos no sofá, diz que já passa muito tempo fora pra passar o resto do dia limpando a casa atrás de cachorro ou gato.
Terminamos a rodada e nos despedimos. Delfim fechou a porta atrás de nós e Floriano saiu falando sozinho – como eu previa, ele não tem nada com essa história.
− O que te leva a essa conclusão, Floriano? Mal falamos do caso, gastamos todo o tempo jogando video-game!
− Carlos, você não reparou em nada peculiar na nossa passagem pelo depósito da escola?
Fiquei tentando lembrar, mas nada me veio a mente além dos olhares esguios da Elaine. Achei melhor não mencionar.
− O que você observou naquela bomba?
− Era bem rudimentar, feita de uma embalagem plástica e envolta em fios elétricos, coisa de amador, como o delegado disse.
− Sim, sim, e a embalagem era de um shampoo para cachorro com aroma floral!
− Agora que você falou, eu achei mesmo estranho isso.
− Pois é, e nosso amigo não pode nem ver cachorro que começa a espirrar. Nosso suspeito é outro.
Na manhã seguinte encontrei Floriano quase correndo em direção à biblioteca, estava indo contar o que decifrou ao delegado.
− Eu sabia que não podia ser nosso amigo assim que vi a bomba feita com embalagem de shampoo de cachorro com aroma floral. Nossa sociedade ainda segue padrões estéticos muito restritos e enquadrados em papeis de feminino e masculino. Esse shampoo só poderia ser de um cachorro de garota. Lembrei que quando estávamos aguardando a porta ser aberta, alguns alunos pegaram os celulares para chamar os pais. Foi aí que vi a foto da poodle da Jessica no fundo da tela do aparelho dela. Foi fácil associar seus motivos, que certamente não tinham relação com cabular aula ou ganhar tempo para uma prova. Ela sempre foi a aluna queridinha do professor de matemática, e todos viam seus olhares revirados para ele. Claro que ele não alimentava essa paixonite adolescente. Inclusive, nos últimos tempos ele vinha cortejando a recepcionista, as flores sobre a mesa de recepção foram enviadas por ele, na véspera do incidente. A Elaine me contou que Jessica viu o buquê e flagrou a recepcionista agradecendo ao professor Juca no intervalo. Então ela resolveu se livrar da rival colocando a bomba sob a mesa. Felizmente, ela não leva jeito para o crime. A porta emperrou bem na hora do desfecho do seu plano impedindo o acesso da recepcionista e ainda por cima, como ela nunca foi muito boa aluna em química, acabou produzindo uma bomba que não funcionou.
O delegado não gostou nada de ser passado para trás por um nerd adolescente, mas teve que reconhecer que sua lógica fazia sentido. Jessica, confrontada, acabou confessando tudo. Os pais dela chegaram a um acordo com a diretoria do colégio para abafar o caso e não dar queixa. Ela mudou de escola na mesma semana. Nós três continuamos inseparáveis, exceto pelas horas de folga da Elaine, quando o Floriano, por uma coincidência misteriosa, desaparece.





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